domingo, março 31, 2013

Templos

No dia em que todas as agendas do ocidente referem
o Filho do Homem,
o domingo em que regressou
depois de, sexta-feira, ter morrido na cruz,
nada mais nada menos do que "por nós",
só me lembro de ti, que morreste pela mesma morte,
deixando dois templos que não têm alternativa a adorar-te,
dois mausoléus de matéria orgânica e costas viradas,
capela mortuária com capela mortuária,
cultos belicosos da mesma entidade,
dois seres ignominiosos e antagónicos
que não te fazem justiça,
tal como catolicismo e ortodoxia
não fazem jus ao Cristo
e menos ainda a Maria.

sexta-feira, março 29, 2013

Biologia

A janela agiganta-se quando penetras na esquadria
abre-se de par em par sobre o teu colo primaveril
a rebentar de potenciais crianças,
azedas amarelas e aromáticas.
O caule dilata-se até ao teu pescoço agasalhado
irrigado pelo ouro fundido que reflui
de regresso ao bairro calcetado e bifurcado.

Os sentimentos microbianos foram erradicados
ou ter-se-ão ampliado?

sábado, março 23, 2013

Copperfields



Daqui a nada, festa –
cheiros, braços, pernas,
dentes arreganhados
cabelos cuidados
despromovidos a desgrenhados
num país açaimado
por um anjo retrógrado
que não se recusa a derrubar pela segunda vez
o muro de Berlim

Somos Arquimedes, Houdinis,
os David Copperfields de Dickens
que comem mar, sol,
iguarias bem mais tenras que metal.

quarta-feira, março 20, 2013

O lobo e o colibri

Nem cumprindo o trajecto inverso
poderia esquecer a nudez
que imperava sobre o nosso encontro.
Embebida de rituais de intersecção
tornou complexo e escrúpulo
os nossos corpos um no outro,
quando outrora morremos na boca
e tudo isso era puro.

Por mais que escale cavidades dentárias
não hei-de alcançar a ponta da tua língua.

sexta-feira, março 15, 2013

Analogia

Dispenso relógios, ábacos
aventais e emulsões
inspiro até as flores murcharem
crianças e velhos desmaiarem.
Sou fome-sede de mil anos
e cresço
Dêem-me rios de tinta
que a destilarei como um polvo
sobre papiro.

quarta-feira, março 13, 2013

Asas

Esta coisa das palavras
que querem ser agarradas
apalpadas, saias levantadas
e agora nada

querem ser escritasditasdifundidas
mas afinal são todas tímidas,
tornou-se demasiado familiar

São pássaros
sem radícula nem grilhão
beleza ambulacrária
oriunda de uma anatomia tropical
- boca, genitais, mão -
que enrolam tantas linhas coloridas
em torno do meu pescoço
que me degolam
como a uma galinha.

segunda-feira, março 11, 2013

Relento

Quando a água é boa
o repasto sacia
e o café reconforta
à sombra de centenas de páginas densas
ampliadas por bom vidro
equacionamos a possibilidade de esta dimensão ser única
e soberana
e isto deve ser bem assim
O prazer dos sentidos é de uma tal magnitude
(os olhos pestanejam húmidos
os músculos distendem-se
braços e pernas ganham pêlos sussurrantes
orifícios ululantes
dedos: sosseguem, não estejam tão tamborilantes
ossos recalcificados
pulmões purificados
rins lavados
linfa totalmente drenada
sangue oxigenado)
que o próprio físico forja uma nova física imaterial
e chama-lhe metafísica
Mas não preciso de mais nenhuma

O meu clitóris é um sonar exposto ao branco luar relento
mas o calor faria um cego crer estar sob um sol de Julho

quinta-feira, março 07, 2013

Henriques

O molusco rubro
suspirava por obscenidades de escriba
perpetradas pelos homónimos patifes
"Henrique... Henriques..."

Audaz, humedeceu as páginas
de bem vinte volumes
exposto à luz do lustre

Todas aquelas fêmeas trespassadas
pelos dois bêbedos gloriosos
(quase de certeza impotentes)
foram-no por sombras e vocábulos,
pelo genioglosso e pela caneta
e devem ter saído dali inflamadas
mas muito mal servidas

Ainda assim, passado meio século,
o molusco molhado empapa páginas
de tomos transatlânticos
cheios de palavreado.